segunda-feira, 7 de outubro de 2013


lit.

A casa é decadente. Pretéritos de classe por todo o lado, na farda do empregado, na tela a óleo, nas senhoras viúvas dos senhores diplomatas. Anacrónica, pastelaria imensa, imersa no aroma a café e a jornal. Uma delícia.
Num passo com propósito, a desafiar a idade, sentaram-se com um rosé e uma cataplana de marisco quatro senhoras sem um vinco, cabelo armado, altas no porte e no espírito.

Não decidiu foi o que fazer aos livros e às garrafas que ele lhe deixou. São às centenas, valem de certeza uma nota.
Não me parece que vá precisar de dinheiro tão cedo.
Não é pelo dinheiro é pelo juízo. Livra-se daquilo tudo, deixa uma garrafa de lado, brinda a si própria e fecha o capítulo. Não é como se ele fosse voltar.
Porque é que não leva as coisas para uma das casas dela?
Está lá com tempo para mudanças! Além do mais está a vender a quinta, que sempre é onde tem mais espaço, e os dois apartamentos que comprou aqui não guardam tanta coisa. Com o cá e lá mais as filhas e Milão não se senta o suficiente para aquecer a cadeira.

Uma das quatro, de óculos descaídos no nariz, permanecia calada. A tenaz da sapateira rivalizava-lhe a atenção. Levantava amiúde os olhos do prato, num aceno genuíno, participativo, para retomar de imediato a operação delicada.

No que ele havia de se meter, o raio do homem. A Alda bem me disse o Antunes saiu da reforma. Há coisa de três meses vi-o no Chiado, até contei à Rita. Impecável, de fatinho de três peças, cheirou-me logo a esturro. Claro que me convidou para almoçar. Claro que lhe disse que não, naturalmente, é preciso lata.
Meia hora depois não estavam a dividir um Montrachet?
É o Antunes, enfim...
Ele repartiu as coisas pelos Branquinhos? As de Lisboa?
Sim, vendeu tudo e o que não vendeu arrendou. Depois entregou-lhes o dinheiro. O resto doou aos miúdos e aos dois centros. Se bem o conheço, e acho que conheço, não deixou nada desatado.

Pediram outro rosé. O café tinha enchido com um grupo de reformados bonacheirões, estrangeiros, que pelo aspecto afogueado vinham fugidos da chuva. O ruído branco das conversas e talheres subiu um nível. A tenaz dera lugar a uma das patinhas mais pequenas e ai dela se o bicho achava que a vencia. As amigas bebericavam pensativamente o vinho. Baixaram o tom e aproximaram as cabeças.

Não é como em oitenta e seis, pois não?
Não me parece. Quer dizer, como é que alguém consegue lá chegar?
Não consegue. Se fizermos a nossa parte, não consegue. Uma vez por ano sabemos qualquer coisa e é isso. Não há desculpas. Certo?

A sapateira perdera claramente o encanto. Olhou por cima dos óculos, inspirou um sorriso triste e só parte dela regressou ao prato.

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