domingo, 15 de dezembro de 2013


Imagine o leitor uma sociedade avançada que criou uma tecnologia para registo de imagens pouco dispendiosa, simples e portátil. Através de um sistema de lentes e diafragma estes aparelhos regulam a passagem de luz para um sensor eléctrico, onde é convertida em informação binária. Esta informação  pode ser comodamente transferida para sofisticadas máquinas descodificadoras que surgiram décadas antes e que vêm gozando de uma evolução exponencial. Interagem com o utilizador através de um ecrã e de um teclado, estreando constantemente meios de interacção mais directos. Permitem fazer quase tudo; para além de manipularem e guardarem as imagens digitais produzem e editam texto, vídeo e som.
Esta sociedade, industriosa que é, desenvolveu uma teia de telecomunicação mundial que permeia milhões destas máquinas com imensuráveis volumes de informação. Para além de constituir uma poderosa ferramenta de trabalho é um extraordinário veículo de cultura, ciência e educação. Também disponibiliza imagens de pipis, o que lhe cimenta definitivamente a popularidade. Foi nesta vasta teia que surgiram recentemente redes de natureza social, onde os participantes registam episódios do seu dia a dia.
Numa observação superficial tudo é belo. As imagens são, afinal, informação preciosa que pode chegar rápida e comodamente a qualquer lado. Mas algo invisível tem vindo a instalar-se entre os homens e mulheres desta terra.
Começou na ideia, compreensivelmente sedutora, da eternidade: captar o momento presente prendendo-o em pixels, armazenando-o numa directoria, mantendo-o vivo e sempre à mão. De forma simples e barata. Na consciência dolorosa da finitude humana representou um conforto até então inexistente.
Não se esperava certamente a perda de controlo que se seguiu. Do apontamento parcimonioso das férias, celebrações e acontecimentos relevantes esta sociedade passou para o registo acéfalo de tudo o que há de mais banal e desinteressante. O cuidado na composição da imagem (impressão digital do artista) desapareceu e a quantidade substituiu a qualidade. Ficaram reféns as memórias sob forma de zeros e uns e divorciou-se o homem do acontecimento. O que se perdeu foi a tríade definidora da natureza humana: a experiência tornou-se desatenta, a análise inexistente e a memória remota, armazenada algures num conjunto de bits. As mentes tornaram-se saltitantes e caóticas - afinal para reter deixou de ser necessária atenção - e a reflexão cuidada e profunda, quando sobrevive, foi relegada para os raros locais apartados da tecnologia, normalmente a banheira e a sanita.
No meio deste descontrolo colectivo encontraram terreno particularmente fértil as almas mais mesquinhas. Do palanque das redes sociais dedicaram-se à construção de mundos perfeitos onde o extraordinário é apresentado como ordinário e o gesto estudado como momento espontâneo.  Vivem o sonho molhado de qualquer narcísico: o reforço da sua superioridade (vivem  - e publicam - experiências que não estão ao alcance dos outros) e a perpetuação da sua vaidade (uma boa parte do tempo é passada a envernizar estes mundos falsos).
Desculpe-me o leitor a distopia, felizmente umbrática, mas há dias em que me dá para aqui.