segunda-feira, 28 de julho de 2014


Então e uma manhã dedicada a alterar documentos na Loja do Cidadão? Ahn, o êxtase... À semelhança das crianças que entram na hora da parva quando o sono aperta assim uma manhã destas desperta n'O gajo disposição afim.

|| Na secretária do Bilhete de Identidade / Cartão de Cidadão ||

- Desculpe, vem maquilhado?
- Venho sim.
- (silêncio)... Hmm... A altura mantém-se?
- Não, cresci trinta e um centímetros desde a última vez.
- Da última vez tinha vinte e quatro anos.
- Tinha. E não chegava ao balcão. Mas disse à sua colega que me sentia grande por dentro e acordámos este valor. Foi quase na mouche.
- (silêncio)
- (silêncio)
- Mantém a assinatura?
- Posso mudá-la?
- Poder pode mas depois tem de o fazer em montes de sítios.
- Estou a ver...
- Vai mudar muito?
- Estava a pensar fazer um esboço da Guernica.
- (silêncio)
- Do Picasso.
- Não pode fazer isso...
- Nem se for só o cavalo?
- Ahn?
- Fica como está, então.

|| Na zona da fotografia do Bilhete de Identidade / Cartão de Cidadão ||

- Aproxime-se mais da lente.
- Não convém, que isso deforma-me a cara e depois ninguém acredita que sou eu.
- Deforma a cara como? A que propósito?
- Tem que ver com a distância focal da lente.
- Ahn?
- Numa grande angular a gente tem de aproximar-se demasiado da lente e cria-se uma distorção de perspectiva valente. É giro para efeitos de comédia mas pouco útil para efeitos de exercício de cidadania.
- Quer sugerir alguma coisa, já que percebe tanto do assunto?
- Uma lente com uma distância focal equivalente a cem milímetros, e já agora uma iluminação melhor.
- Quer um holofote na tromba?
- Não, que isso baralha de certeza o valor de exposição e provavelmente o balanço de brancos.
- (silêncio)... Pode pôr-se à distância que quiser, depois olhe para a luz vermelha.
- Com certeza.

E é basicamente isto.

sábado, 19 de julho de 2014


O meu cão chegou ressentido do passeio com a dona. É incapaz de me enganar, tudo aquilo é transparência. O que imaginei que tivesse sido um ralhete por ignorar regras de trânsito foi afinal uma tampa duma Schnauzer. Coisas destas é dar-lhes tempo, mas fiz-lhe ver que estou aqui para ele. Eu e uns Cheesy Bites com queijo e carne.

segunda-feira, 7 de julho de 2014


Não é como se a irresponsabilidade criminosa de quem afirma ler o futuro em baralhos de cartas ou bolas de cristal ou entranhas de peixe me surpreendesse por aí além. Sempre se vendeu banha de cobra e enquanto houver gente haverá gente a vendê-la. A estupidez crédula e o desespero dos inadaptados será sempre terreno fértil para este tipo de parasitas.
O que me surpreende mais é uma estação de televisão dar tempo de antena a uma vidente que oferece diagnósticos de anatomia patológica e prognósticos clínicos por telefone. Não é piada de mau gosto, embasbacado amigo leitor, aconteceu mesmo. O facto da consulta ter sido feita por interposta pessoa (era a filha da telespectadora que tinha um problema na tiróide) e de não ser sustentada por qualquer anamnese, exame objectivo ou exames complementares é obviamente uma questão menor. Outra questão menor é o facto desta taróloga não ser formada nem em medicina nem em anatomia patológica.
E não é a primeira vez que isto acontece. Já no passado tinha sugerido a uma idosa que fracturara a bacia sair da cama para que o osso pudesse "colar" como deve ser. Na altura o bastonário da Ordem dos Médicos manifestou-se contra este tipo de irresponsabilidade leviana mas parece que não foi suficiente e, como boa menina mal educada, reincidiu.
Palavra que tenho curiosidade em saber se esta impunidade vai continuar ou se a estação de televisão vai acabar por ser processada por andar a legitimar brincadeiras perigosas, juntamente com a própria taróloga/vidente/bruxa. Era bom sinal que num país desenvolvido alguém tivesse de responder por isto. Uma opinião médica dada por quem não o é e legitimada por uma estação de televisão é um disparate demasiado sério.
Podia até torcer para que esta fulana fosse ela própria objecto deste tipo de diagnóstico cego quando tiver um problema grave mas desconfio que é suficientemente inteligente para recorrer antes a alguém qualificado. Se entretanto estivermos aborrecidos e sem nada para fazer podemos sempre tentar surpreendê-la durante uma consulta privada simulando um enfarte. Com tanto conhecimento clínico e poder divinatório não é certamente mulher para se deixar enganar.

quinta-feira, 3 de julho de 2014


Duas coisas que me fazem comichão no céu da boca

Gente que acha que os olhares que recebe na rua legitimam o seu mau gosto sartorial. Uma senhora na casa dos cinquenta, com mais de cem quilos, de leggings brancas justas e sem roupa interior provoca-me admiração, provoca sim senhor. Mas não a admiração que sinto, vamos lá, num passeio estival num bosque norueguês embalado por Peer Gynt. Não. A admiração é mais parecida com aquela que sinto quando passo por um acidente particularmente grotesco: não consigo deixar de olhar, mas a minha vida será sempre pior daí em diante.

Gente que insiste em maltratar os verbos da primeira conjugação usando a primeira pessoa do plural do Pretérito Perfeito do Indicativo em lugar da primeira pessoa do plural do Presente do Indicativo. Nós não "falamos ontem à tarde com fulano tal". Também não "combinamos ontem à noite fazer isto e aquilo". A não ser que tenhamos arranjado maneira de manipular a continuidade espaço-tempo isto não tem sentido. Calinadas gramaticais que viraram moda é denunciá-las à bruta com muita veemência.