sexta-feira, 29 de novembro de 2013


Querida família,
estou quase com nove meses e queria dizer-vos que descobri um novo mundo. Agora já sou crescido e por isso deixei-me de mamas... A minha mãe deu-me um leite diferente de que não gostei nada mas agora já gosto. Como muito bem a sopa, porque eles dizem que faz bem e me faz crescer. Já experimentei coisas novas e até já me deram pão, que eu aproveito para massajar os dentes.
Mas o mais giro é que já me sento sozinho e quando apanho os meus pais distraídos gatinho pela casa toda. Comecei a gatinhar de marcha atrás mas agora já sei ir para a frente. A minha mãe está sempre a insistir para eu bater palmas, porque uma menina filha de uma amiga que tem menos dois meses que eu já bate palminhas, mas eu vou bater palmas quando eu quiser.
Estou cheio de vontade de falar com os meus pais, mas só sai uma chuva de cuspe...
Ah e continuo a adorar a hora do banho com o meu pai.
Muitos beijnhos e abraços.
Santiago
 
 
 
Querido Santiago,
Assim mesmo é que é, já é altura de deixares as mamas. Não penses é que é viagem sem regresso, que garanto-te que vais voltar a elas um dia mais tarde. Já a sopinha é a base duma dieta equilibrada - o que é argumento irrefutável, estejas na segunda classe com a roda dos alimentos ou em bioquímica a fixar compostos. Além do mais é uma maravilha para quando um gajo vive sozinho, ou como no meu caso com dois mamíferos cuja noção de haute-cuisine é 'descongelar uma pizza'.
Pumba a afinar essas vias córtico-medulares desde cachopo! E aprender a andar para a frente só depois de dominada a marcha atrás sempre é melhor agora do que daqui a dezoito anos com um instrutor de condução a urinar-se em pânico ao teu lado. Não é tem tanta piada, claro.
Se querem ver-te a fazer macacadas cobra bilhete. Não te deixes enrolar pá.
Quanto à chuva de cuspe guarda-a no repertório que quando estiveres a ser multado daqui a uns anos vai ser-te útil no diálogo com o senhor agente da autoridade.
Ah e no futuro vais achar muito mais piada à hora do banho noutras companhias... holandesas, fica a sugestão.
Grande abraço,
teu primo J.

sábado, 23 de novembro de 2013


Diz que hoje aconteceu uma coisa gira. Cheia de moral e assim. Aposto que o La Fontaine já fabulou sobre isto.
Ia eu no calhambeque, todo cumpridor do código da estrada, quando tive de parar num sinal vermelho. Aproveitei a oportunidade para oscular repenicadamente a minha senhora. O que eu fui fazer... O gesto enfureceu o senhor que seguia atrás de mim. Cegou-o de fúria. A partir desse instante passou a ser um homem numa missão. Como a zona era antiga, por isso de ruas estreitas e em mau estado, não lhe restou outra opção senão seguir-me até ter espaço para me tomar a dianteira. Fê-lo à distância - não regulamentar, parece-me - de sete centímetros. Seguíamos em alegre comboio, o senhor, eu e os quatro veículos à minha frente, quando a faixa alargou finalmente para uma espécie de berma; foi então que encontrou a oportunidade tão esperada: acelerou ruidosamente e encaixou-se entre o meu carro e a carrinha de caixa aberta que seguia à minha frente. Olhou para o retrovisor com um sorriso de triunfo e deu um toque no travão, brincalhão que era. Nesse instante a carrinha passou num buraco, soltou o ferrolho da porta da caixa e descarregou-lhe num divertido estrondo duas bilhas de gás no capot.
Estive para lhe perguntar se precisava de ajuda mas a duzentos metros havia outro semáforo e a minha senhora deve ser osculada de cinco em cinco minutos. Caso contrário falece um pinguim, e eu gosto à brava de pinguins.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

 
A chegada do inverno acorda os mais variados humores. Há quem lamente o fim dos dias longos de calor, há quem antecipe o Natal e os reencontros da época, há quem se anime com o frio e as oportunidades que este traz, quer de intimidade quentinha quer de criatividade sartorial.
Para mim, a chegada do inverno significa o regresso dos anúncios ao Ferrero Rocher. E o regresso dos anúncios ao Ferrero Rocher aquece-me a alma. O requinte muito anos oitenta traz-me de novo as férias de Natal da escola primária, as manhãs passadas dentro do saco-cama na brincadeira e os almoços em casa da avó com cheirinho a advento. A graciosidade da senhora do Rolls Royce é a saborosa consciência dum mundo de prosperidade e dolce vita e a lealdade incondicional do Ambrósio conforta como a companhia de um velho amigo.
Num mundo imprevisível, um café com um Ferrero Rocher no conforto duma casa inundada pelo sol de inverno faz maravilhas.

terça-feira, 12 de novembro de 2013


lit.

Meteu-se no elevador absorto, o edifício que descia a hipnotizá-lo. Ou era ele que subia. A julgar pelo ânimo era o mundo que passava, ele quieto. Parede, porta, parede, porta, parede, porta, parede, a porta.
Atravessou com fome o corredor até ao número 43, deixou a máscara e entrou no silêncio da casa.
Fixou-se no reflexo à janela enquanto fazia o jantar, duas latas de atum à espera num prato enquanto o ovo cozia. Mas não encontrou um homem. Não um, uno; um como em três terços, oito oitavos, treze treze avos.
Jantou ausente, levantou a mesa numa coreografia maquinal e lavou a louça em crescente astenia, na desconstrução violenta de quem se percebe fracção.
Não se recorda se lavou os dentes, nem se tomou os comprimidos.
Mas lembra-se de adormecer na certeza de que viver por viver tivesse sido em verdade consigo. Pudesse a brevidade do Acto ter encorajado urgência em ser autêntico. Talvez então não se tivesse vendido até não se reconhecer mais num reflexo. Talvez hoje fosse um, inteiro. Talvez.
Talvez o arrependimento fosse, ainda a tempo, o primeiro passo noutra direcção.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013


Muita coisa fascinante pode acontecer num provador de roupa. Estava entretido num cubículo espelhado a provar umas luvas e um gorro (sempre que tenho a oportunidade de me pôr todo nu da cintura para baixo aproveito-a) quando me sobressaltou a invasão do cubículo contíguo por uma horda de adolescentes. Pela comoção imaginei cerca de vinte, percebi depois que eram quatro. Entregaram-se a um diálogo vazio acerca de coisa nenhuma. Subscrevendo aquele contrato social em que nos subvalorizamos só para que nos contradigam, a adolescente mais estridente queixava-se de como determinadas calças número trinta e oito empacotavam mal a sua gordura horrorosa; as outras garantiam-lhe que tinha um corpo excelente, tomaram elas. Voltou à pesca de elogios mais duas vezes, com sucesso. À terceira investida a única que ainda não tinha falado diz-lhe
Ó Sara, pensa na quantidade de gente ainda mais gorda e feia que tu - é apenas uma questão de perspectiva.
A seguir a um s...s...sim hesitante, quase afónico, devem ter decidido que afinal não precisavam de roupa, porque sairam rapidamente e em silêncio.
Não sei o que é mais notável neste extraordinário episódio, se a fleuma com que a moça estraçalha a amiga se a esperança que nos traz gente desta que desde pequena se recusa a compactuar com personalidades histriónicas.
Recordou-me um momento de semelhante gáudio que vivi aqui há uns anos. Nas auto avaliações de final de período uma colega adepta do mesmo tipo de pesca subavaliou-se desavergonhadamente. Os professores reagiam normalmente com espanto, convencendo-a do seu valor e mestria, ela mostrava-se desconfortável com a honra mas acabava por aceitar a nota e andávamos nesta farsa em sete disciplinas três vezes por ano. Não nesta ocasião. Ao avaliar-se em quinze valores, quando merecia dezassete, a professora registou calmamente a nota no livro de ponto e seguiu para o nome seguinte. A absoluta indiferença aos joguinhos de aprovação foi um momento épico. E ainda beneficiámos a longo prazo do facto da pequena ter parado com as palermices e passado a auto avaliar-se como deve ser.

domingo, 3 de novembro de 2013