Parece uma inevitabilidade em várias
publicações (algumas delas hebdomadárias) perguntar a um entrevistado a sua maior
virtude e o seu maior defeito. A pergunta tende a surgir no final da conversa, como se o dipolo sintetizasse aquilo em que ele ou ela se tornou. Tudo o que entremeou o primeiro
cocó e o almoço daquele dia moldou um ser, obviamente digno da nossa atenção,
que se polariza nessas duas qualidades. Esta mania, senhores, é mania que
fede.
Começa na assunção de que o entrevistado é alguém
de valor. Normalmente não é. Sócrates (o grego)
disse um dia à hora do lanche que a fama é o perfume dos actos heróicos.
Disse muito bem. Que a definição de acto heróico tenha deixado de
ser o triunfo marítimo sobre o vizinho geográfico ou o domínio das ‘contendas
atléticas - das que praticam os homens’ ou a aceitação estóica do capricho dos
deuses parece-me pouco pertinente. É do contraste entre as duas escalas de
valores que surge a perplexidade. A antiga eleva à fama os que se superaram,
a si, às dificuldades; aqueles que malgradas as falhas pessoais acrescentaram
valor só por terem sido; a hodierna promove a estultícia e o espalhafato. Não é isto uma fastfoodização
transversal? Metemos à boca qualquer trampa porque é de acesso fácil e porque
o palato está anestesiado; por coerência, lemos qualquer trampa porque está disponível
em cada quiosque e porque a mente está anestesiada. É corolário que elevemos à
fama qualquer trampa. É a fixação com o imediato. Queremos famosos insufláveis.
Longe de mim a apologia do herói. Seria insensato dar-lhes a exclusividade do meu
respeito, quanto mais não fosse por preservação do meu amor-próprio. Sejam
também todos os outros: os normais e os simples; os feios, os porcos, os maus. Um
sincero hip hip hurra à diversidade! Só lamento que a fama não seja
subproduto da excelência.
E depois vem a falsa modéstia.
Andar com rodriguinhos para assumir uma virtude é
pateta. A única coisa que consegue é acrescentar aos possíveis defeitos a hipocrisia.
Pior ainda é dar como defeito uma alegada qualidade.
Ó para mim tão modesto ao admitir como maiores fraquezas o espírito de entrega
e a integridade / Que acabo invariavelmente por ser desiludido ou ultrapassado
/ Que devia ser menos altruísta. Não, caro entrevistado
companheiro amigo. Não. Essas não são as suas maiores fraquezas. Devia levar
uma luvada no frontispício o meu amigo por dizer uma parvoíce dessas e o
senhor jornalista por lha publicar. A sua maior fraqueza é, sei lá, a sua deficiente higiene
pessoal. Ou o seu narcisismo galopante. Ou as suas insólitas parafilias. Ou a
sua paranóia obsessiva-compulsiva de verificar sempre se trancou a porta do
carro oito vezes enquanto recita os rios de Portugal e esfrega a nuca. Nem me
parece que o condenassem se as eufemizasse um pouquinho; mas a recusa em
identificar as suas fraquezas retira crédito às qualidades que possa vir a enunciar
e aliena o leitor inteligente. Em contrapartida demonstra a esse leitor que a
desonestidade é um defeito que o meu amigo cultiva diligentemente. Haja algo
positivo no facto de ser palerma.