quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Ia hoje no metro uma senhora de idade a falar com outra senhora de idade.
Dizia uma
Temos conversado muito, sempre à noite e de vez em quando a seguir ao almoço ou de manhã, é quando me dá.
Questionava a amiga
Tem-te ajudado?
Garantia a primeira
Muito, o Jesus é um amigo como não tive muitos. Sempre disponível.
Foi ao fim de uns bons cinco minutos disto que percebi que estavam a falar do Messias.
Não sei o que hei de sentir, confesso.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014


A Universidade Lusófona é um sem fim de bons momentos.
Há uns meses descobrimos a seriedade com que encara a formação académica dos seus alunos. Mostrou-nos a todos que aprender para passar é um bocado parvo. O truque está em construir um currículo profissional cheio de valências e trocá-las depois por créditos universitários. Tem duas vantagens: reedita no aluno aquela felicidade pueril da troca de cromos com os amigos (troca-me aí um estágio por uma teórico-prática do 3º ano) e poupa-o à maçada de ter de acordar cedo, estudar e almoçar as pataniscas rançosas da cantina.
Agora ficámos a conhecer a retidão que coloca também na formação humana dos seus pupilos. No seguimento da morte de seis dos seus estudantes numa praia do Meco, na sequência de uma praxe que correu mal, há um mancebo que publica um aviso num tom que envergonharia a 'Ndrangheta.
Se formos inclinados a reflexões filosóficas não podemos deixar de detectar uma coerência pedagógica irrepreensível. Igualmente exemplar é o testemunho da evolução da personalidade mafiosa: do aluno que ameaça os colegas ao político de carreira. É como aquela imagem clássica da evolução do hominídeo violento para o homem superior. Sendo que neste caso o percurso é o inverso.

sábado, 18 de janeiro de 2014

 
lit.
 
Estava há cinquenta e dois minutos à espera quando o mandaram entrar. Sentou-se do outro lado da secretária de frente para o médico, um indivíduo calvo e gordinho de óculos de massa e olhos claros. O contraste físico entre os dois homens era antropologicamente notável.
Estamos melhor?
Já me dói menos o corpo, sim.
Os comprimidos, às horas certas?
Sim.
E já começou a fisioterapia?
Ainda não, doutor.
Nem fazia tenção de a começar; não era a primeira vez que ficava amassado num combate e costumava lamber as feridas sozinho.
Diga-me o resultado da TAC assim que o tiver e evite esforços físicos nas próximas semanas. Os treinos estão fora de questão, claro.
...
Tem posto as bolsas de frio nos braços e nas coxas?
Não doutor, não encontrei para o meu número.
Então improvise qualquer coisa. Duas horas de frio por dia no mínimo, já sabe.
Oscultou-o, mediu-lhe a pressão arterial, rabiscou a ficha clínica e dispensou-o.
Quando saiu para a rua fazia frio e estava escuro. Perdera muito mais tempo do que contava e ia atrasar-se para o jantar. Talvez a mulher não tivesse feito nada de muito especial ou que exigisse pontualidade. Não gostava de se atrasar e menos ainda de a desiludir.
Decidiu atalhar pelas traseiras da loja de móveis, virar à esquerda na papelaria e contornar o antigo pavilhão de ginástica; depois atravessar o terreno baldio da Câmara, vedado há anos, e o bairro antigo. Nada de extraordinário, apenas bom senso e sentido de orientação.
Galgou numa passada ampla um muro baixo e sentiu a coxa latejar. Desta vez fora demasiado longe. A mulher alertara-o nos últimos tempos para o peso dos anos e das mazelas, numa apreensão quase maternal. Sabia que não podia abrandar; admitir que talvez fosse altura de pendurar as luvas significava abdicar de bem mais do que um desporto. Não era uma desistência para a qual estivesse preparado. Mas talvez a sugestão do gelo não fosse descabida...
Estranhou o som abafado que ouviu para lá das portas de metal do antigo ginásio, por isso abrandou o passo e encostou o ouvido à chapa. O ruído vinha de longe e as trancas estavam abertas; antes de pensar já estava mergulhado no escuro do pavilhão.
Percebeu duas vozes para lá dum corredor estreito. O homem rosnava qualquer coisa indecifrável e a mulher choramingava e gemia entre soluços. Talvez pelo treino de anos, talvez pela cena que previa, talvez por outra coisa qualquer, ficou tenso e alerta. Cruzou o corredor num passo ligeiro, desceu a escada de ferro para a cave sem qualquer som e parou atrás duma fila de cacifos. O homem mantinha um pé em cima da mulher, caída no chão seminua e ensanguentada. Porque estava de costas, não o viu e manteve-lhe a lanterna apontada. Porque ela estava de bruços, virada para os cacifos, encontrou-o na sombra e olhou-o com desespero. Nunca ninguém lhe parecera tão pequeno.
A primeira fractura foi nas costelas. Na surpresa do ataque a lanterna caiu ao chão e a única luz passou a ser a que coava pela janela junto ao tecto vinda dum candeeiro da rua. Enquanto o homem cambaleava a mulher reuniu forças e fugiu, oferecendo àquele salvador impossível uns olhos enormes. Atirou o homem ao chão com uma joelhada no estômago, prendou-o entre as coxas e começou a sová-lo.
Não sabe quanto tempo aquilo durou. Parou quando as mãos, habituadas a maus tratos, deixaram de dar acordo. Não se impressionava facilmente mas o que viu no chão assustou-o. Não ia ser fácil identificar o corpo.
O mesmo ímpeto que o conduziu àquela sala levou-o de novo para a rua. Não era bem ele, movia-se numa semi-consciência atípica. Deixou o casaco num contentor de lixo à saída do ginásio e o caminho até casa foi como um daqueles sonhos que confundimos com a realidade.
A mulher tinha grelhado salmão e pimentos e recebeu-o com apreensão; o cheiro a churrasco puxou-o ligeiramente do torpor.
Está tudo bem, homem?
Sorriu-lhe com dificuldade e desculpou-se para a casa de banho. Acendeu um cigarro às escuras, a sentir o corpo a doer de novo, e ficou à espera de qualquer coisa. Do quê não sabia.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014


O Inferno existe e é um local de sofrimento inimaginável, tal como apregoam as Escrituras. A sentença para as almas pecadoras é uma eternidade passada a enfiar edredons de casal nas respectivas capas sem qualquer tipo de ajuda.

domingo, 5 de janeiro de 2014


Há algo anacrónico e lúgubre num espectáculo de circo. O fascínio pelo domínio duma arte física continue tão vivo em nós como nos públicos vitorianos, mas o que era novidade no século dezanove dificilmente o é em dois mil e catorze. Os circos deixaram de ser há muito os únicos palcos onde podemos admirar piruetas arriscadas e senhoras de maillot - basta uma ligação à internet.
O mais sinistro são mesmo os palhaços. Quando era miúdo havia sempre um palhaço triste e um palhaço contente. Hoje em dia acho-os todos tristes. Porque o humor é humilde e estafado; porque os desgraçados, muitos com idade de avô, passam o dia maquilhados com tintas cancerígenas; porque a maior parte vive numa pobreza miserável anestesiada à custa de bebida.
Há nestes espectáculos toda uma cultura de desrespeito que me faz espécie. Pôr um homem de meia idade a repetir palermices de cara pintada, ou um ginasta dorido a replicar os mesmos pinotes vezes sem conta, ou a partenaire dum mágico a surpreender-se com o truque de sempre é rebaixá-los. Não consigo deixar de pensar que de cada vez que repetem a rotina vendem um bocado da alma. Não é coisa que me apeteça aplaudir.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014


Quantos de nós teríamos atingido a idade actual tivéssemos nascido há duzentos anos?