sábado, 18 de janeiro de 2014

 
lit.
 
Estava há cinquenta e dois minutos à espera quando o mandaram entrar. Sentou-se do outro lado da secretária de frente para o médico, um indivíduo calvo e gordinho de óculos de massa e olhos claros. O contraste físico entre os dois homens era antropologicamente notável.
Estamos melhor?
Já me dói menos o corpo, sim.
Os comprimidos, às horas certas?
Sim.
E já começou a fisioterapia?
Ainda não, doutor.
Nem fazia tenção de a começar; não era a primeira vez que ficava amassado num combate e costumava lamber as feridas sozinho.
Diga-me o resultado da TAC assim que o tiver e evite esforços físicos nas próximas semanas. Os treinos estão fora de questão, claro.
...
Tem posto as bolsas de frio nos braços e nas coxas?
Não doutor, não encontrei para o meu número.
Então improvise qualquer coisa. Duas horas de frio por dia no mínimo, já sabe.
Oscultou-o, mediu-lhe a pressão arterial, rabiscou a ficha clínica e dispensou-o.
Quando saiu para a rua fazia frio e estava escuro. Perdera muito mais tempo do que contava e ia atrasar-se para o jantar. Talvez a mulher não tivesse feito nada de muito especial ou que exigisse pontualidade. Não gostava de se atrasar e menos ainda de a desiludir.
Decidiu atalhar pelas traseiras da loja de móveis, virar à esquerda na papelaria e contornar o antigo pavilhão de ginástica; depois atravessar o terreno baldio da Câmara, vedado há anos, e o bairro antigo. Nada de extraordinário, apenas bom senso e sentido de orientação.
Galgou numa passada ampla um muro baixo e sentiu a coxa latejar. Desta vez fora demasiado longe. A mulher alertara-o nos últimos tempos para o peso dos anos e das mazelas, numa apreensão quase maternal. Sabia que não podia abrandar; admitir que talvez fosse altura de pendurar as luvas significava abdicar de bem mais do que um desporto. Não era uma desistência para a qual estivesse preparado. Mas talvez a sugestão do gelo não fosse descabida...
Estranhou o som abafado que ouviu para lá das portas de metal do antigo ginásio, por isso abrandou o passo e encostou o ouvido à chapa. O ruído vinha de longe e as trancas estavam abertas; antes de pensar já estava mergulhado no escuro do pavilhão.
Percebeu duas vozes para lá dum corredor estreito. O homem rosnava qualquer coisa indecifrável e a mulher choramingava e gemia entre soluços. Talvez pelo treino de anos, talvez pela cena que previa, talvez por outra coisa qualquer, ficou tenso e alerta. Cruzou o corredor num passo ligeiro, desceu a escada de ferro para a cave sem qualquer som e parou atrás duma fila de cacifos. O homem mantinha um pé em cima da mulher, caída no chão seminua e ensanguentada. Porque estava de costas, não o viu e manteve-lhe a lanterna apontada. Porque ela estava de bruços, virada para os cacifos, encontrou-o na sombra e olhou-o com desespero. Nunca ninguém lhe parecera tão pequeno.
A primeira fractura foi nas costelas. Na surpresa do ataque a lanterna caiu ao chão e a única luz passou a ser a que coava pela janela junto ao tecto vinda dum candeeiro da rua. Enquanto o homem cambaleava a mulher reuniu forças e fugiu, oferecendo àquele salvador impossível uns olhos enormes. Atirou o homem ao chão com uma joelhada no estômago, prendou-o entre as coxas e começou a sová-lo.
Não sabe quanto tempo aquilo durou. Parou quando as mãos, habituadas a maus tratos, deixaram de dar acordo. Não se impressionava facilmente mas o que viu no chão assustou-o. Não ia ser fácil identificar o corpo.
O mesmo ímpeto que o conduziu àquela sala levou-o de novo para a rua. Não era bem ele, movia-se numa semi-consciência atípica. Deixou o casaco num contentor de lixo à saída do ginásio e o caminho até casa foi como um daqueles sonhos que confundimos com a realidade.
A mulher tinha grelhado salmão e pimentos e recebeu-o com apreensão; o cheiro a churrasco puxou-o ligeiramente do torpor.
Está tudo bem, homem?
Sorriu-lhe com dificuldade e desculpou-se para a casa de banho. Acendeu um cigarro às escuras, a sentir o corpo a doer de novo, e ficou à espera de qualquer coisa. Do quê não sabia.

1 comentário: