quinta-feira, 31 de outubro de 2013


lit.

Não eram ainda sete horas quando estacionou a carrinha e já a noite se instalava. Havia duas semanas que não se dava pelo sol e o ar húmido entrava agreste em todo o lado, o que tornava difícil manter o ânimo, especialmente para quem andava boa parte do dia na rua.
Foi de espírito pesado que desligou o motor e ficou à espera, de mãos debaixo das coxas. Pesava-lhe o cansaço de uma semana de trabalho nem sempre estimulante e quase sempre mal pago. Se o horário relativamente fixo lhe trazia uma previsibilidade bem vinda estes casos especiais não tinham propriamente hora marcada e costumavam intrometer-se-lhe na noite. Numa sexta feira de chuva a comissão era parca compensação pelo adiar do jantar.
Não teve de esperar muito pela chegada do chefe e do colega. O primeiro tratava-o com um paternalismo desconfortável; gostava de lhe lembrar, nem sempre com subtileza, que a sua contratação fora um favor de grande generosidade em honra do pai e que nos tempos que correm uma oportunidade daquelas era um privilégio. O segundo, com quem fazia a maior parte do trabalho de terreno, era do tipo reservado, de tal maneira neutro que nunca sabia que assunto puxar quando estavam juntos. A maioria das vezes trabalhavam em silêncio, o que não o desagradava propriamente.
Esperaram que o portão de ferro abrisse e ouviu o areão estalar debaixo dos pneus. A consciência daquela riqueza alheia não estava propriamente a animá-lo. Foi a sobrinha da falecida que os recebeu, uma mulher na casa dos setenta, e que os conduziu ao salão e ao espólio: os quadros em cavaletes dispostos em semi-círculo e as esculturas em cima de duas mesas grandes ao centro.
Tivemos pouco tempo de preparação, algumas coisas ainda estão como a minha tia as deixou. Mas penso que assim serve...?
Perfeitamente. A generosidade da sua tia deixa-nos a todos muito felizes.
Uma herança daquelas representava um acréscimo de valor considerável à actual colecção e não passaria certamente despercebido aos proprietários do museu que fora o chefe a conseguir aquele acordo. Havia razão para estar feliz.
Enquanto este e o colega faziam uma análise rápida aos quadros deteve-se à entrada da sala. A foto duma mulher de alguma idade, alta e magra, de sorriso aberto e olhos claros tinha lugar de destaque por cima do piano. O tecto branco, alto, trabalhado nos cantos num relevo complexo continuava a sensação de luz das paredes claras. A temática roxa e bege da decoração e o cheiro a madeira tratada faziam do espaço um reduto feminino; a preferência pelo metal escovado, nas molduras, nos candeeiros e nos vasos rematava uma experiência estética anacrónica mas curiosamente cativante.
Enquanto esperamos a chegada do advogado, o Dr. Gouveia, posso mostrar-vos a escultura que não está incluída no testamento. Mantivemo-la no atelier, por causa do peso. Eu levo-os até lá - temos é de levar guarda-chuva...
Um corredor comprido, onde abriam vários quartos e salas, dava acesso ao jardim. Atravessaram-no em passo rápido e subiram os três degraus de acesso ao atelier, uma construção de porta e paredes de vidro temperado, com um alpendre largo ladeado por vasos de pedra.
Já começámos a empacotar as coisas, receio que esteja um bocadinho atravancado. Aproveito e dou um salto à cozinha, deixo-os à vontade. Depois podemos esperar na sala com um chá e umas bolachinhas.
Com a permissão do chefe acendeu um cigarro e ficou à porta; viu-o contornar com o colega um conjunto de embrulhos e malas dispostos em desarmonia. O ambiente caótico de fim de festa contrastava com a serenidade e a elegância do resto da casa. Ao lado da porta alinhavam-se cinco caixas identificadas como Pintura. Reparou numa mão cheia de fotografias antigas, no cimo da primeira, amarelecidas pelos anos. A fotografia do topo prendeu-lhe a atenção por reconhecer de imediato o recorte do Matterhorn.  No meio de um grupo de oito pessoas, sentada ao comando de uma moto com sidecar, olhava em frente com sorriso aberto uma mulher jovem e magra, de olhos claros; o homem agachado no sidecar ao seu lado fitava-a com um sorriso gaiato. O colega chamara entretanto a atenção do chefe para um gira-discos ao lado da escultura, com um vinil ainda assente no prato. O chefe ligou-o à tomada e depois de verificar a agulha baixou o braço. À porta do atelier, sentiu-se inesperadamente leve. Talvez pela promessa de um chá quente, talvez pelo piano de Thelonious Monk, talvez por outra coisa qualquer. Fumou o resto do cigarro na confortável sensação de que a noite de trabalho ia custar menos do que prometera.

sábado, 26 de outubro de 2013

Opus 23

Num bloqueio turvo, semblante tolinho,
Permaneces sentada com as calças no chão
Pois sem papel higiénico à mão
Como havias tu de limpar o rabinho?

Dez maços de lenços na prateleira em frente
Dariam resposta adequada, pois é -
Não fosse um simples exercício à mente
Atirar-te bem longe para fora de pé.

Num primeiro embate com o teu nevoeiro
Pensamos ser só humor pouco usual
Mas logo se expõe um terreno avesseiro
Tão estéril de vida que não parece real.

Na apreensão típica dos confusos
Destilas conflito por todo o lado;
Sozinha retrais-te à enleada inacção
Naquele fácies bem toleirão
Tão próprio de alguns tipos de gado.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013


A Estética tem sido importunada numa base diária e ninguém se levanta em sua defesa. O culpado é, naturalmente, o actual fetiche masculino com relógios de punho colossais. Parece nem interessar se custam trezentos euros ou trinta mil. Entendo que o homem moderno, tendo trocado a caça e a defesa pelo tablet 4G e o macchiato de avelã, procure balançar esta mariquice com símbolos viris. E nem vou encetar considerações freudianas acerca desta fixação compensatória com o tamanho. Mas um relógio da dimensão dum pires não traz à mente poder ou força, traz à mente o Batatinha. Trinta e seis milímetros de caixa chegam, a sério.

sábado, 19 de outubro de 2013


Foi durante a cavaqueira pós prandial com a minha senhora, enquanto entretíamos questões menores, que se consubstanciou nos nossos espíritos incrédulos algo de extraordinário relevo. Um quesito que sumula, caro leitor, boa parte das grandes questões com que alguma vez se debateu; que levanta, de imediato, outras tantas para reflexão futura. Não há que temer o assombro duma grande ideia ou hesitar no elogio em boca própria: trata-se, admitamo-lo, da síntese das considerações ocidentais dos últimos quinhentos anos. Se não está sentado sente-se.
Aqui vai: porque é que vender o pipi* na sétima arte carrega maior estigma do que vender a ética no dia a dia?
Experimente dizer em qualquer fórum social que é actor na indústria pornográfica. Analise a recepção. Garantidamente pouco empática, seja homem ou mulher. Olhá-lo-ão com repulsa, desdém ou inconfessa predação. Tudo pouco agradável. Experimente agora apresentar-se como economista teórico responsável por uma coluna de opinião. Omita, para o efeito, a quantidade incalculável de vezes em que a realidade, essa marota, desdisse o autismo da sua análise "científica". Ou refira a sua paixão pelo Direito e a carreira que construiu na advocacia. Omita, para o efeito, a chusma de degenerados sem qualquer esperança de redenção que defendeu ao longo dos anos. Ou partilhe o seu trajecto político de luta desde as baixas camadas partidárias até à posição de influência que agora detém. Omita, para o efeito, o mar de demagogia em que vive desde que se lembra de ser gente. Ou recorde as férias em que conheceu o seu cônjuge e o projecto a dois que daí resultou. Omita, para o efeito, que a estima que lhe tem é toda na medida da sua conta bancária. Encontrará na plateia reacções díspares, certamente, mas duvido que o brindem com o repúdio reservado aos que passam os dias a suar de gatas. E no entanto não escasseiam virtudes a esta desqualificada carreira. Senão debrucemo-nos. O objecto artístico, o sexo, é algo que todos são capazes de apreciar - grande parte da população investe nele uma boa parcela das suas vidas e os que não o fazem dão certamente espectadores entusiastas. É uma carreira que pugna pela boa saúde: o praticante tem de manter uma forma física invejável, quer no tónus quer na estamina, e faz mais despistes médicos do que qualquer outra alma, mesmo a que pratica tanto ou mais. E é uma escolha sensata não só em termos financeiros - vive melhor do que a média da população - como em termos humanos - conhece constantemente gente nova.
Urge uma resposta capaz de interpretar a razão de ser desta injustiça. Tenho pronta uma bonita recompensa: um conjunto de três VHS de muito bom cinema. Não precisam de recear o estigma: o rótulo diz "Jogos Olímpicos Sidney - atletismo".

*quem diz pipi diz naturalmente pilinha.

sábado, 12 de outubro de 2013


Acredito na discussão de ideias como um dos exercícios mais nobres a que o Homem se entrega. Acredito também que o debate teórico de ciência, de arte, da História pode ser um fim em si mesmo. Não vejo que a circunscrição ao plano abstracto limite minimamente a validade do discutido. Mas não deverá aquilo que nos incomoda passar do plano abstrato? Não teremos nós a responsabilidade de agir de acordo com a homilía que pregamos, legitimidade oblige? O potencial que as ideias encerram é isso, potencial. A realidade não se altera à força de teses.
O status quo é uma merda. É uma merda a falta de emprego e a precariedade do que encontramos, é uma merda o volume de impostos sem destino útil, é uma merda o caciquismo e o compadrio, uma merda a burocracia estatal, uma merda a dependência europeia...
Certo. E então?
Diagnosticava uma eminente figura aqui há uns dias uma eterna fonte de descontentamento de que todos somos obrigados a beber, por imposição de uma força malévola externa. Não percebi bem que força - se o governo, se a época, se os deuses do Olimpo. Enfim, discordo em absoluto. Não somos obrigados a nada. Épocas houve em que a falta de liberdade individual nos condenava a uma vida difícil, não poucas vezes miserável e insalubre. Poucos conseguimos imaginar como as sociedades pré-iluministas desconsideravam o cidadão anónimo e o acorrentavam a uma máquina supersticiosa, intolerante e retrógrada. A pena de morte era normalmente um dissuasor eficaz de veleidades individualistas ou contestatárias.  Nem nas suas divagações mais selvagens os ricos do passado sonhariam com a abundância e a conveniência das ferramentas de que hoje dispomos. Vivemos com muito mais do que alguma vez os nossos antepassados viveram. E no entanto uma percentagem considerável da população escolhe não fazer uso pleno da liberdade de que hoje goza.
Podemos secar a fonte do nosso descontentamento, sim. Vejo três opções proactivas.
Posso secá-la comprometendo-me a mudar qualquer coisa. Por mim e pelos outros. Penso e discuto o problema, tomo um banhinho e saio de casa. Interajo, oponho-me, convenço, não convenço, dou, levo. Arrisco. Inscrevo-me n(um)a luta.
Também posso secá-la saindo da fila, vivendo em paralelo. Dentro da legalidade (e quantos percursos alternativos cabem dentro da lei) ou mesmo fora dela. Arrisco. Um dia, eventualmente, a realidade que me incomodava - a dos outros - deixou de ser a minha.
Posso ainda secá-la emigrando. É um modo de sair desta fila; se a nova em que me inscrevo é melhor ou não é outra questão. Arrisco. O passo foi dado, a acção concretizou-se.
Há, claro, uma outra opção, reactiva, que não seca fonte nenhuma. Escolho uma vida de rabugice constante e amarga; na frustração das minhas expectativas escolho não agir. Parece ser uma opção popular. Reclamo que me farto, denuncio inflamadamente, convencido de que o queixume é a única hipótese que me resta. E se não produzo manifestos difundo os alheios, que é uma forma ainda mais fácil de estar. Coroo de razão quem diagnostica, quem reclama, do conforto cobarde da minha inacção.
A proactividade exige coragem; viver barafustando - ou dando razão a quem barafusta - nem por isso. Um desabafo é um desabafo, mas por qualquer motivo obscuro passámos a premiar a lamúria académica, virou modo de vida. Trocar a única ferramenta de mudança - a acção - pela admiração alheia de um punhado de diagnósticos contundentes é um bocado vergonhoso.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013


lit.

A casa é decadente. Pretéritos de classe por todo o lado, na farda do empregado, na tela a óleo, nas senhoras viúvas dos senhores diplomatas. Anacrónica, pastelaria imensa, imersa no aroma a café e a jornal. Uma delícia.
Num passo com propósito, a desafiar a idade, sentaram-se com um rosé e uma cataplana de marisco quatro senhoras sem um vinco, cabelo armado, altas no porte e no espírito.

Não decidiu foi o que fazer aos livros e às garrafas que ele lhe deixou. São às centenas, valem de certeza uma nota.
Não me parece que vá precisar de dinheiro tão cedo.
Não é pelo dinheiro é pelo juízo. Livra-se daquilo tudo, deixa uma garrafa de lado, brinda a si própria e fecha o capítulo. Não é como se ele fosse voltar.
Porque é que não leva as coisas para uma das casas dela?
Está lá com tempo para mudanças! Além do mais está a vender a quinta, que sempre é onde tem mais espaço, e os dois apartamentos que comprou aqui não guardam tanta coisa. Com o cá e lá mais as filhas e Milão não se senta o suficiente para aquecer a cadeira.

Uma das quatro, de óculos descaídos no nariz, permanecia calada. A tenaz da sapateira rivalizava-lhe a atenção. Levantava amiúde os olhos do prato, num aceno genuíno, participativo, para retomar de imediato a operação delicada.

No que ele havia de se meter, o raio do homem. A Alda bem me disse o Antunes saiu da reforma. Há coisa de três meses vi-o no Chiado, até contei à Rita. Impecável, de fatinho de três peças, cheirou-me logo a esturro. Claro que me convidou para almoçar. Claro que lhe disse que não, naturalmente, é preciso lata.
Meia hora depois não estavam a dividir um Montrachet?
É o Antunes, enfim...
Ele repartiu as coisas pelos Branquinhos? As de Lisboa?
Sim, vendeu tudo e o que não vendeu arrendou. Depois entregou-lhes o dinheiro. O resto doou aos miúdos e aos dois centros. Se bem o conheço, e acho que conheço, não deixou nada desatado.

Pediram outro rosé. O café tinha enchido com um grupo de reformados bonacheirões, estrangeiros, que pelo aspecto afogueado vinham fugidos da chuva. O ruído branco das conversas e talheres subiu um nível. A tenaz dera lugar a uma das patinhas mais pequenas e ai dela se o bicho achava que a vencia. As amigas bebericavam pensativamente o vinho. Baixaram o tom e aproximaram as cabeças.

Não é como em oitenta e seis, pois não?
Não me parece. Quer dizer, como é que alguém consegue lá chegar?
Não consegue. Se fizermos a nossa parte, não consegue. Uma vez por ano sabemos qualquer coisa e é isso. Não há desculpas. Certo?

A sapateira perdera claramente o encanto. Olhou por cima dos óculos, inspirou um sorriso triste e só parte dela regressou ao prato.